Parece um filme bobo, mas me conduz a lugares nada distantes de mim.
Forte, verdadeiro, exemplar do mundo social e do
mundo natural.
"Indelible scars, pivotal marks"
"I make a fist, I'll make it count"
Filmes têm história para mim. São terapêuticos. São chaves que abrem
portais. Histórias que se escondem esperando a hora de serem descobertas.
Sou órfão. Não fui. Sou. Talvez, ainda que não quisesse, esta é a
experiência mor da minha história. Nenhuma identidade me traduz melhor. Sou tantos,
ou nem tantos assim. Sociólogo o que mais me satisfaz. Contudo, para ser
sincero mais do que devia, sou órfão.
Sobre isso o filme se debruça. Ser órfão. Outras espécies são mais instintivas.
Humanos são sociais, logo coletivos. Nascem dependentes. Precisam de exemplos.
Precisam de apoio. Há quem diga que não sobrevivem sem suporte de adultos
cuidadores. O filme relata outra história. Outro lugar. E quando quem te ensina
a existir não são teus protetores?
Uma das minhas primas recordações é a do anseio por uma armadura medieval.
Lembro de passar na rua do meu dia e ver a vistosa vestimenta de proteção num
antiquário. Ainda acompanhado de uma mãe, aquela criança sorriu maravilhado pelo
espetáculo daquela indumentária e fez o pedido: “Este é meu presente!”. A
impossibilidade se deu pela classe social, porém sem nenhum questionamento a
mais, como era de se esperar. Minha mãe, massa que me modelou, também não era
deste mundo.
Talvez ela vislumbrasse o pequeno guerreiro que havia parido. Seu olhar
para meus rompantes de fúria e perseverança traduziam sua desconfiança de que havia
mais do que os pobres mortais ignoravam. Só conheci um escudo humano. Durou
exatos 13 anos. Treze, aquele número que melhor me representa, a despeito de
ter nascido neste dia de maio.
O filme mostra como um órfão sobrevive. Adquire um olhar que vê além dos
olhos. Uma coragem que não significa o forçado “desistir não é uma opção”.
Existir é o que se tem. Muitos talentos se perdem. Não há como aprender a barganhar
atenção com joguinhos de sedução quando o que se busca é cumplicidade. A
superficialidade das aparências não existe no dicionário de órfãos. Aqueles
deixados ao abandono desconhecem as sutilezas infantis da humanidade. Em grande
medida, a humanidade nos escapa. Podemos ser parecidos, imitamos algumas vezes,
perfomamos tantas outras, mas não somos iguais. A matéria da socialização é
escassa para nós. Aprendemos no silêncio, na observação dos Outros, dos
distantes. Somos essencialmente sozinhos.
Somos rompidos, destruídos até. E desta rachadura produzimos outra
substância. Somos infinitamente mais fortes, ainda que sem consciência da própria
fortaleza. Somos avessos ao talento humano para a mentira. Não se trata de ser
moralmente superior, uma vez que não partilhamos do mesmo código (a)moral.
Mentir é enganar. Sobreviver das próprias adversidades não te permite este artifício.
A rudeza da solidão é espada-mestra.
Amamos a humanidade, ansiamos pela presença. Todavia, nos encontramos no
insulamento do eu – local do temor ausente. Assim como a protagonista do filme,
nunca conheci nenhum humano/a que partilhasse de mim, do que eu sou. Não
conhecemos a linguagem humana, embora tenhamos boa fluência nesse “humanês” pouco
partilhado conosco.
Conhecemos o julgamento moralista dos humanos. Suas leis, suas normas, suas
regras sem sentido. Seguimos outras. Não sabemos nada da suposta coerência
humana. Somos partículas que se encontram na fusão do mundo natural-social.
Para sobreviver abdicamos do medo (tão humano) e vivemos feitos de tecido-coragem.
Nossas verdadeiras confissões vêm dos seus líquidos reveladores.
Ouçam-nos ao lado da companhia da bebida de Odin ou do néctar de Baco e conhecerão
as mais belas órfãs- histórias! Guerreiros brindam ao narrar seus contos.
Tragam as melodias dos bardos e mais narraremos.
No filme a protagonista se apaixona pela biologia e a desenha esplendidamente.
A paixão nos move (como lembrou Dante). A arte que me arranca a máscara é a escrita.
Amo-a mais que a vida. Ou apenas vivo para a escrita. Desde que não contida,
ela e apenas ela, me traduz.
Em tempos antigos, quando era jovem para a humanidade, outro filme me
arrebatou: Gênio indomável. História de quem aprendeu que confiança não se pede,
posto ser genuína conquista. Violência é habitual na vida de órfãos. Parece um
carma, se nos permitissem tal crença. Da violência apreendemos a força do ódio.
Se nos odeiam, que nos temam, como ensina Maquiavel. “Toda criatura faz o que é preciso para
sobreviver”.
Humanos dirão que somos feitos de abandonos. É uma verdade. Há outras. Ser
órfão é ser abandonado. A ausência fortalece a lembrança. Somos gratos, embora poucos
decifrem nossos sinais. Ser amigo de um órfão é ter um eterno guardião.
Guardamos o Amor, a Amizade. Mas o código que representamos é maior que as
necessidades corriqueiras. Somos feitos de imortalidade. Marcamos como a
tatuagem que desenha a pele humana para a eternidade.
O final da história tenta aproximar a órfã dos destinos habituais dos
humanos: “felicidade para sempre”, ainda que a Morte – entidade superior à
mortalidade humana – não vos abandone. E neste instante, o filme me afeta demasiado.
A cena do reencontro, daquele feliz novo encontro, com sua “má” lembrou-me que fui
pai antes de ser filho. E setembro traz a ausência do único pai que se dispôs a
amar um filho-órfão. O luto tem sido meu material de aprendizado, minha
companhia na ausência da tua certeza. Há quase um ano ouvi o questionamento “Por
que tamanho pranto?”, em resposta imediata disse uma semi-verdade: “Porque foi o
adulto que sempre quis conhecer quando criança”. Hoje, conhecendo-me mais,
assim como o próprio descaminho trilhado, diria que apenas os órfãos sabem da
ausência dos pais.
Te espero. Venha me buscar.
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