A-fetar (melhor lido ouvindo Antes das seis de Renato Russo)
Pela impossibilidade de falar
mais, pensei em escrever. Pensei muito. Não sei se escreverei tanto.
Pela impossibilidade de conversar,
escrevo pra falar comigo primeiro. Sinto falta de ouvir e de ser ouvido. Mas
também sinto falta das letras desenhando-se na tela na velocidade das emoções
intensas. Talvez minha única certeza inabalável (até aqui) é a de que a escrita
me espelha melhor. Minha alma é escrita.
Como para mega sensíveis não há coincidências,
ao relembrar a trilha sonora dos idos anos 90 e uma adolescência toda cheia de
sonhos fui ao mercado abastecer-me com originais geladas. A tristeza é mais feliz
alcoolizada. E a vida é triste demais. No mercadinho mais bem estilizado
musicalmente tocava a canção da novela do primeiro “crush”: era o sinal! Eu
deveria escrever.
Quando pensei sobre os afetos, sobre
ser afetado... Talvez eu tenha sido mais. Numa incógnita contradição, não ser
afeto é a melhor forma de afetar. Ou a pior. Só sei que esperei todos os dias
por algo que não conheci, e sinceramente, há uma dura certeza advinda da exatidão
científica de que não conhecerei. Preciso fazer um esforço enorme para lembrar
qual a sensação (vagamente sei ser boa) de um afago no rosto. Um pária
curitibano facilmente torna-se intocável. Enquanto sou tocado pelas vidas que
reconheço todos os dias no ofício que escolhi, sou invisível. Sei que também me
escondo, contudo, não encontro poros de abertura pra existir além de um mísero
e prosaico professor.
O fato é que encontro um vazio
que se abre constantemente em mim. Não tenho objetivos. Pela classe, preciso de
emprego e salário. Mas e a finalidade deste quase meio século? Não sou afeito a
crenças em finais felizes. Não conheci nem começos, por que os finais deveriam
conhecer felicidades? Iniciei por teimosia, que se fosse por inteligência,
teria desistido. A vida é ausência demais. Ainda assim, busquei afetos em todos
os lugares, até os mais improváveis e inóspitos. Para alguma coisa deve servir ter
nascido em maio.
Nunca fui o desejo, o afeto, a
saudade, o apego, o amor de ninguém. Talvez dos gatos, mas por falta de opção.
Eu nunca fui opção. Por isso, acho piegas e irritativo o mantra contemporâneo
identitarista “resistir não é opção”. Nesta luta liberal individualista do
século XXI, do lugar de “cala” (a boca), tudo se romantiza e no glamour
açucarado dos egos e das contas bancárias infladas as frases-bombas explodem
num sentido evasivo e (mal) afetado.
Para ser desejado, como ser, como
corpo ou como insubstituível (ainda que instantânea) companhia, antes é
necessário ter valor. E valor vem do orgulho. Do seu contrário vem o fracasso, trilha
conhecida da identidade deteriorada. Como se afeta um corpo sem valor? Como se
produz presença num ser da ausência? Como se inscreve a falta em quem é pleno
de escassez? Onde se desliga o motor da carência? Onde está o tal privilégio
colorido que eu deveria ter? A única cor que eu conheci foi o cinza nublado.
Indago, pois, há uma fúria que me
invade. De onde vem as vitórias tão alardeadas? Onde guardam seus aplausos? Os
abraços são reais? E esta tal “potência de vidas” se encontra em qual
esconderijo?
Sou íntimo da violência. Minha
imponente tutora, presente em meus dias e noites de dentes à mostra buscando o
mínimo de defesa. Sou irmão do exílio. No insulamento de uma vida que já se alonga
demais, sou defeito e causa de um coletivo que não me inclui. Sozinho, ilhado
nos meus pensamentos e sentimentos sou quem ama estudar o social. O mais
distante é o impossível para mim. A vida tal como Coringa, ri em desespero das
minhas escolhas. Por que minha paixão por tudo que me foi privado? Que espécie
de perversão meu espírito aceitou para amar tudo que me faz falta?
O princípio da negação “a” talvez
explique o quanto me afeta a exiguidade dos afetos. Eu, como feto teimoso que por
idiota insistência tornou-se nascido, sou o A-feto.
Renato sempre esteve certo.
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