terça-feira, outubro 22, 2013

Carta a uma árvore



Hoje me lembrei daquela árvore. E fiz essa carta. Nunca tinha pensado. Queria saber quando conheci essa energia. Esse medo.
Não a perda. Essa já era parte. Desde pequeno as ausências são presentes. Criança boba, sem enxergar direito olhava pro caminho solitário. A espera era sempre sozinha. Aos cinco anos, aprendi devagar que minha mãe ia me esquecer. Promessa não era dívida. E chorei até adormecer. Sonhava com o avião que esmaga a dor. Aprendi que guerreiros tem calcanhar. Aquiles. O meu, Eros.
Meses nunca apagavam a saudade dos irmãos. Sem sangue, minha irmandade é espírito. Hoje latidos e lambidas me reconhecem. Miados são filhos. Aprendi a ser papai sem conhecer um. Meus filhos me ensinaram que bastava pouco. Amor e cuidado. Paciência e respeito.
E aquela árvore na frente de casa. Nunca soube qual a espécie. E precisa? Pra quem? A minha não existe. Eu amava aquela árvore. Linda. Sinto seu cheiro ainda hoje. Pequeno abraçava o pouco que podia de sua majestade. O grande momento do dia era chegar correndo em casa, mochila pesada espancando minhas costas, e frear na frente daquela maravilha. Olhava pra ela como se me conhecesse. Contei segredos e aposto ter ouvido os dela. Suas folhas escorriam pra me presentear. Seus presentes eram derramar suas folhas, meus primeiros marcadores de páginas.
Um dia olhando pra ela, suspirando pela sua beleza, ouvi: “és o que és, um menino que sabe amar, mas serás guerreiro”. Bobo e idiota, apenas sorria porque minha árvore era minha, e agora me falava. Será que me escutava? Decidi ler meus poemas, contar minhas aventuras. Um ritual diário acontecia. Chegar da escola e avisá-la o que tinha aprendido. Sua paciência era enorme, ouvia até meu encanto com trigonometria. Sabia que um menino sozinho encontra amigos em letras e números.
Contudo, eu sentia sua dor. Pulsava. E eu bobo como sempre, preferia achar que ela estava de charme. O que nos tiraria a felicidade? Porque eu sempre apostei errado?
Um dia ouvi adultos dizerem que haveria uma poda de árvores. Não poderia ser ela. O que ela fazia demais? Ela não incomodava ninguém, quem estivesse ainda assim incomodado que fosse para longe. Minha amiga era grande demais. Forte demais.
Mas eu não fui. Uma legião de estrangeiros abriu fogo contra minha amiga. Corri sem parar para segurá-la. Gritava, chutava cada um que se aproximava. Ela era minha, isso deveria ser motivo suficiente para ninguém machucá-la! Em vão, corri para protegê-la. Conheci o escárnio masculino. Era só um trabalho como qualquer outro. Não! Era minha amiga que morria. Ela ainda me olhou, e tombou encerrando pra sempre nossa história. Meu ódio era tanto que não via direção. As pedras voavam para meus agressores. Riam de mim e profanavam minha amiga. Chorei em seus galhos. Grudei neles. Sem forças para aquele combate, arrancaram meu corpo de seus restos. Minha alma já viajava ao seu lado.
Cheguei em casa com um único galhinho, pequeno que me serviu de espada para atingir os meus adversários. Olhos fechados em desespero, ouvi minha mãe tentar me explicar que eu não mudaria isso. Gritava: Por quê? Sem resposta, dizia: o que há com você criança? Pensava: ora, não é óbvio? Mataram meu amor! Como mãe de um guerreiro sabia que eu sobreviveria. Cuidou de meu sono. Acordei com sua frase: está melhor? Pode ir à escola?
Fui. Devia isso a minha amiga. Aprendia tudo por ela. Jurava não esquecê-la. E seu último galho foi doado ao último lar de minha mãe, porque sei que elas seriam amigas. Entreguei o que tinha de seu para que cuidasse da travessia de minha mãe, ela saberia o que fazer.
Nunca mais nos falamos. Cresci e ela estava certa. Seria guerreiro. Hoje lembrei dela. Acordei com seu cheiro. Olhei pra ela e disse: sim, estou ainda aqui e tenho tanto a te contar. Ainda somos amigos. E não cresci. Foram e são tantas batalhas. Porém, ainda sou menino. Bobo. Não gosto de trigonometria, embora ainda lembre nossas fórmulas. Hoje tenho outros estudos.
E quando te perguntei se ainda lembrava de mim depois de tanto tempo, um sopro trouxe uma folhinha verde. Ainda somos amigos. Ainda me ouve. Não estou sozinho. Ainda te amo.




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