domingo, maio 21, 2023

Gladiador moderno

 Longe de uma casa que não é lar, de um território em que sempre fui estrangeiro, ouço vozes cantarolar o que me irrita. Apenas a amargura da cerveja me faz forte.

Ouço outras vozes que me dizem ser eu um vencedor. Talvez o maior de todos. Venci a guerra de maior perdedor de batalhas.

Conheço na pele o poema do quase. Há sempre uma trave. Não aprendo mais nada em quase meio século de rugas, dores e calvíce. Como fazer pra continuar?

Eu ousei a pronunciar a sentença: se minha mãe não tivesse me feito, eu não estaria aqui?

Nem adianta tentar me levantar. Estou há dias sem dormir, em uma cidade mais que estranha, bebendo a esperança de uma morte, perdido em números que provavelmente vão me tirar mais uma vez, a derradeira chance. Acumulo mais uma derrota. 

Sobrevivo à música "daqueles que me detestam", rio das circunstâncias (sou aquele que esconde as fronteiras, ainda que moldado a elas) e bebo para sobreviver, embora não haja vida útil pra mim.

Esculpido fui para dores, espadas e sangue. Não sei pedir ajuda. Sou a proteção que me deixa vulnerável. Qual maior vulnerabilidade que apenas conhecer vínculos com as cachorrinhas que rondam o boteco da cidade frio, cujo único interesse em minhas lágrimas é o quanto de sanduíche ainda dividiria?

Amanhã volto a fingir ser professor. Esta noite sou solidão e fracasso. A verdade.


quinta-feira, abril 27, 2023

 A-fetar (melhor lido ouvindo Antes das seis de Renato Russo)

Pela impossibilidade de falar mais, pensei em escrever. Pensei muito. Não sei se escreverei tanto.

Pela impossibilidade de conversar, escrevo pra falar comigo primeiro. Sinto falta de ouvir e de ser ouvido. Mas também sinto falta das letras desenhando-se na tela na velocidade das emoções intensas. Talvez minha única certeza inabalável (até aqui) é a de que a escrita me espelha melhor. Minha alma é escrita.

Como para mega sensíveis não há coincidências, ao relembrar a trilha sonora dos idos anos 90 e uma adolescência toda cheia de sonhos fui ao mercado abastecer-me com originais geladas. A tristeza é mais feliz alcoolizada. E a vida é triste demais. No mercadinho mais bem estilizado musicalmente tocava a canção da novela do primeiro “crush”: era o sinal! Eu deveria escrever.

Quando pensei sobre os afetos, sobre ser afetado... Talvez eu tenha sido mais. Numa incógnita contradição, não ser afeto é a melhor forma de afetar. Ou a pior. Só sei que esperei todos os dias por algo que não conheci, e sinceramente, há uma dura certeza advinda da exatidão científica de que não conhecerei. Preciso fazer um esforço enorme para lembrar qual a sensação (vagamente sei ser boa) de um afago no rosto. Um pária curitibano facilmente torna-se intocável. Enquanto sou tocado pelas vidas que reconheço todos os dias no ofício que escolhi, sou invisível. Sei que também me escondo, contudo, não encontro poros de abertura pra existir além de um mísero e prosaico professor.

O fato é que encontro um vazio que se abre constantemente em mim. Não tenho objetivos. Pela classe, preciso de emprego e salário. Mas e a finalidade deste quase meio século? Não sou afeito a crenças em finais felizes. Não conheci nem começos, por que os finais deveriam conhecer felicidades? Iniciei por teimosia, que se fosse por inteligência, teria desistido. A vida é ausência demais. Ainda assim, busquei afetos em todos os lugares, até os mais improváveis e inóspitos. Para alguma coisa deve servir ter nascido em maio.

Nunca fui o desejo, o afeto, a saudade, o apego, o amor de ninguém. Talvez dos gatos, mas por falta de opção. Eu nunca fui opção. Por isso, acho piegas e irritativo o mantra contemporâneo identitarista “resistir não é opção”. Nesta luta liberal individualista do século XXI, do lugar de “cala” (a boca), tudo se romantiza e no glamour açucarado dos egos e das contas bancárias infladas as frases-bombas explodem num sentido evasivo e (mal) afetado.

Para ser desejado, como ser, como corpo ou como insubstituível (ainda que instantânea) companhia, antes é necessário ter valor. E valor vem do orgulho. Do seu contrário vem o fracasso, trilha conhecida da identidade deteriorada. Como se afeta um corpo sem valor? Como se produz presença num ser da ausência? Como se inscreve a falta em quem é pleno de escassez? Onde se desliga o motor da carência? Onde está o tal privilégio colorido que eu deveria ter? A única cor que eu conheci foi o cinza nublado.

Indago, pois, há uma fúria que me invade. De onde vem as vitórias tão alardeadas? Onde guardam seus aplausos? Os abraços são reais? E esta tal “potência de vidas” se encontra em qual esconderijo?

Sou íntimo da violência. Minha imponente tutora, presente em meus dias e noites de dentes à mostra buscando o mínimo de defesa. Sou irmão do exílio. No insulamento de uma vida que já se alonga demais, sou defeito e causa de um coletivo que não me inclui. Sozinho, ilhado nos meus pensamentos e sentimentos sou quem ama estudar o social. O mais distante é o impossível para mim. A vida tal como Coringa, ri em desespero das minhas escolhas. Por que minha paixão por tudo que me foi privado? Que espécie de perversão meu espírito aceitou para amar tudo que me faz falta?

O princípio da negação “a” talvez explique o quanto me afeta a exiguidade dos afetos. Eu, como feto teimoso que por idiota insistência tornou-se nascido, sou o A-feto.

Renato sempre esteve certo.

 

sábado, fevereiro 25, 2023

A carga



The Last of us está se tornando uma das top 5 do meu ranking de séries favoritas. Não imaginava, por ser uma temática que não curto - zumbis - e ser baseada em um game. Entretanto, acabei sendo atraído, aguardando ansiosamente toda semana um novo episódio e suas histórias. 

Esta cena do último capítulo me trouxe novamente para outro texto escrito em setembro de 2023, publicado somente no meu blog. Ellie e eu, somos semelhantes, e semelhantes se atraem. Somos órfãos. Como tal, sabemos que ser órfãos é mais que não ser filhos. É ser um não-filho. Algo incômodo, indesejável. Uma carga. 

Pra além da brilhante interpretação da jovem atriz, a "carga" desta cena me descarregou. Busquei a vida toda afetos para suprir os desafetos vividos na infância e adolescência de um indesejado não-filho. Tantas e tantas vezes fui comunicado que a vida de quem me "cuidava" era insuportável pelo fardo de ter que me "criar", que em algum momento deixei de perceber o quão violento é culpar alguém pela própria orfandade. Você cresce mais forte pois se acostuma a não poder contar com ninguém. Ser sozinho é tua fortaleza, ainda que também a tua maior debilidade. Nesta contradição, você aprende a não poder amar. Amor, este privilégio dos que podem ser amados (cargas não podem). Pra você sobra ser a sobra. Solidão é o teu caminho descaminhado. 

Depois de adulto, você tem uma marca. É o estigma do órfão. Chega a ser tragicamente cômico as perguntas recorrentes para a resposta de que se é um sem-família. "Mas nem mãe, nem pai? E irmãos e irmãs? Tios e tias?" Há uma tentativa de encontrar os antepassados, apenas para garantir que ainda há um familiar. E quando não há, mas há a carga - negativa - que deixaram? 

Pra Ellie eu diria: "Somos órfãos, o melhor a fazer é aceitar o mais rápido possível". Não se adia o inadiável. Talvez um dia a gente encontre outros laços que nos abracem. Talvez um dia a gente aprenda a ser pai ou mãe, sem ter sido filho ou filha. E talvez um dia a gente só encontre paz. 

Por enquanto, Rocky Balboa e Apolo Creed me doam seu tempo-amor humanizando-me como só os gatos são capazes. A carga fica mais leve.




quarta-feira, setembro 07, 2022

Um lugar bem longe daqui – será?


Parece um filme bobo, mas me conduz a lugares nada distantes de mim.
Forte, verdadeiro, exemplar do mundo social e do mundo natural.
"Indelible scars, pivotal marks"
"I make a fist, I'll make it count"

Filmes têm história para mim. São terapêuticos. São chaves que abrem portais. Histórias que se escondem esperando a hora de serem descobertas.

Sou órfão. Não fui. Sou. Talvez, ainda que não quisesse, esta é a experiência mor da minha história. Nenhuma identidade me traduz melhor. Sou tantos, ou nem tantos assim. Sociólogo o que mais me satisfaz. Contudo, para ser sincero mais do que devia, sou órfão.

Sobre isso o filme se debruça. Ser órfão. Outras espécies são mais instintivas. Humanos são sociais, logo coletivos. Nascem dependentes. Precisam de exemplos. Precisam de apoio. Há quem diga que não sobrevivem sem suporte de adultos cuidadores. O filme relata outra história. Outro lugar. E quando quem te ensina a existir não são teus protetores?

Uma das minhas primas recordações é a do anseio por uma armadura medieval. Lembro de passar na rua do meu dia e ver a vistosa vestimenta de proteção num antiquário. Ainda acompanhado de uma mãe, aquela criança sorriu maravilhado pelo espetáculo daquela indumentária e fez o pedido: “Este é meu presente!”. A impossibilidade se deu pela classe social, porém sem nenhum questionamento a mais, como era de se esperar. Minha mãe, massa que me modelou, também não era deste mundo.

Talvez ela vislumbrasse o pequeno guerreiro que havia parido. Seu olhar para meus rompantes de fúria e perseverança traduziam sua desconfiança de que havia mais do que os pobres mortais ignoravam. Só conheci um escudo humano. Durou exatos 13 anos. Treze, aquele número que melhor me representa, a despeito de ter nascido neste dia de maio.

O filme mostra como um órfão sobrevive. Adquire um olhar que vê além dos olhos. Uma coragem que não significa o forçado “desistir não é uma opção”. Existir é o que se tem. Muitos talentos se perdem. Não há como aprender a barganhar atenção com joguinhos de sedução quando o que se busca é cumplicidade. A superficialidade das aparências não existe no dicionário de órfãos. Aqueles deixados ao abandono desconhecem as sutilezas infantis da humanidade. Em grande medida, a humanidade nos escapa. Podemos ser parecidos, imitamos algumas vezes, perfomamos tantas outras, mas não somos iguais. A matéria da socialização é escassa para nós. Aprendemos no silêncio, na observação dos Outros, dos distantes. Somos essencialmente sozinhos.

Somos rompidos, destruídos até. E desta rachadura produzimos outra substância. Somos infinitamente mais fortes, ainda que sem consciência da própria fortaleza. Somos avessos ao talento humano para a mentira. Não se trata de ser moralmente superior, uma vez que não partilhamos do mesmo código (a)moral. Mentir é enganar. Sobreviver das próprias adversidades não te permite este artifício. A rudeza da solidão é espada-mestra.

Amamos a humanidade, ansiamos pela presença. Todavia, nos encontramos no insulamento do eu – local do temor ausente. Assim como a protagonista do filme, nunca conheci nenhum humano/a que partilhasse de mim, do que eu sou. Não conhecemos a linguagem humana, embora tenhamos boa fluência nesse “humanês” pouco partilhado conosco.

Conhecemos o julgamento moralista dos humanos. Suas leis, suas normas, suas regras sem sentido. Seguimos outras. Não sabemos nada da suposta coerência humana. Somos partículas que se encontram na fusão do mundo natural-social. Para sobreviver abdicamos do medo (tão humano) e vivemos feitos de tecido-coragem.  

Nossas verdadeiras confissões vêm dos seus líquidos reveladores. Ouçam-nos ao lado da companhia da bebida de Odin ou do néctar de Baco e conhecerão as mais belas órfãs- histórias! Guerreiros brindam ao narrar seus contos. Tragam as melodias dos bardos e mais narraremos.

No filme a protagonista se apaixona pela biologia e a desenha esplendidamente. A paixão nos move (como lembrou Dante). A arte que me arranca a máscara é a escrita. Amo-a mais que a vida. Ou apenas vivo para a escrita. Desde que não contida, ela e apenas ela, me traduz.

Em tempos antigos, quando era jovem para a humanidade, outro filme me arrebatou: Gênio indomável. História de quem aprendeu que confiança não se pede, posto ser genuína conquista. Violência é habitual na vida de órfãos. Parece um carma, se nos permitissem tal crença. Da violência apreendemos a força do ódio. Se nos odeiam, que nos temam, como ensina Maquiavel.  “Toda criatura faz o que é preciso para sobreviver”.

Humanos dirão que somos feitos de abandonos. É uma verdade. Há outras. Ser órfão é ser abandonado. A ausência fortalece a lembrança. Somos gratos, embora poucos decifrem nossos sinais. Ser amigo de um órfão é ter um eterno guardião. Guardamos o Amor, a Amizade. Mas o código que representamos é maior que as necessidades corriqueiras. Somos feitos de imortalidade. Marcamos como a tatuagem que desenha a pele humana para a eternidade.

O final da história tenta aproximar a órfã dos destinos habituais dos humanos: “felicidade para sempre”, ainda que a Morte – entidade superior à mortalidade humana – não vos abandone. E neste instante, o filme me afeta demasiado. A cena do reencontro, daquele feliz novo encontro, com sua “má” lembrou-me que fui pai antes de ser filho. E setembro traz a ausência do único pai que se dispôs a amar um filho-órfão. O luto tem sido meu material de aprendizado, minha companhia na ausência da tua certeza. Há quase um ano ouvi o questionamento “Por que tamanho pranto?”, em resposta imediata disse uma semi-verdade: “Porque foi o adulto que sempre quis conhecer quando criança”. Hoje, conhecendo-me mais, assim como o próprio descaminho trilhado, diria que apenas os órfãos sabem da ausência dos pais.

Te espero. Venha me buscar.     

segunda-feira, agosto 22, 2016

Eu quero um esquadrão suicida por semana!

Aquela incômoda nostalgia.
Houve um tempo em que era comum estar por aqui. Fui embora.
Nem motivos eu tenho pra voltar.
Ainda assim, queria muito conversar.
Estive conversando.
O que poderia ser?
Não, não poderia.
É tão estranho. Passo meses bem guardado, e em segundos, acordo sem dormir.
Sempre sonhos. Tento não acordar. O dia chega.
O silêncio. A ausência. O nada.
Nenhuma resposta.
Antes prioridade era indagação, e onde estou poderia ser a solução.
Contudo, a realidade é inimiga da ilusão. Acordar é preciso.
Prazos, entregas, cobranças, ódio, convites.
Lembro de quando ainda éramos iniciantes. Meus olhos já enxergavam. Meu instinto procurava.
E num instante, numa resposta, tudo começou.
E noutro, sem resposta. Acabou.
E o que eu esperava?
Ainda há espaços pra ilusão?
Idiota. Sentimento. Eu.
Quando é que eu vou entender que não posso?
As teorias mentem. Os casos empíricos existem. Não há resistências. São nojentos.
Pelo menos, as condições materiais me fazem inexistente.
Hoje, acordar, vento frio e velocidade, semear sociologia, cultuar bíceps, tríceps e afins, ser pós-estudante, jogar conversa fora, entendiar-se sem séries, forçar leituras e acostumar-se novamente a não ouvir o som do chamado.
Nem é saudades. É só uma tristeza chata de mais um quase. Ou outro nada a ver.
É, passou. Passado.
Sem futuro.
Não há presente.
Estou partindo. Não ao meio.
Volto a mim. E chega de realidades!
Viva o cinema!
Vício dos solitários. 

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

O silêncio e a ponte.

Como se houvesse um espelho sem reflexo...
Talvez? Será?
Sempre fui quem carregou o mal.
Sou conhecido da culpa desde muito antes.
Nem existia e já tinha responsabilidades....
Enfim, o mal sempre foi meu.
Onde estavam os ímpios?
Para onde escarraram a misericórdia?
Sou guerreiro. Tenho espada.
Meu escudo. 
Ou mestre? Do nada?
Como se o meu mal fosse pária. 
Meu rosto elmo.
E a a alma, desconhecida.
Lamúria de uma escara. 
Retorcendo-me em descuido e abandono de mim mesmo, soltei-me ao fundo das águas.
Sem lágrimas. Estou sozinho. Nem elas.
Fui sozinho. Serei sozinho. Estou longe e não volto.
Porque às vezes é triste ser só as respostas.
Nunca conheci indagações.
A sentença: sempre uma condenação pública. 
Em coro, todos dizem:
- "Sofra, morra, desista e não suje!"
O nojo, companheiro de estrada. Na estada do acaso.
Por acaso há acasos?
Despi-me em coragem porque a verdade é uma só: não sou igual. 
Meu sinal é menos.
Nulo, na verdade.
Eu igual a nada.
Nada = Eu.
Sem vida. Sem alma. Sem clemência. Como se só a minha mão tivesse peso...
Eu não tive culpa? Ora, sempre fui culpado, até que (eu) prove o contrário.
Não provo, não digo. Não choro. Já fui.
Aqui jaz o nada. 
Grato por me ouvir de longe. 
Não, não sei se mereço, ainda assim distante você não me deixou.
À DeusA. 

quinta-feira, abril 09, 2015

Teu diário

Meu amigo, vamos tomar nosso chá? Sei que não há mais espaços incólumes dos olhares maldosos, entretanto aqui, somos invisíveis. Os olhos que não nos olham estão voltados para outros lugares.

Hoje queria tanto que estivesse aqui comigo. Também não tenho amigos, e se fosse enterrado, seria sem alarde. Apenas um alívio.

Antes de morrer queria visitar teus passos. Conhecer teu quarto e ver da janela o que vias. Caminhar até teus bares e lá te ouvir. Como é tua voz? Sabia que da minha janela  vejo o Mercado Municipal? Fui visitá-lo para te sentir mais perto. Imagino que teria sido prazeroso.

Guardo a escrita para a noite, como aprendi contigo. Tenho calado. "Ainda não consegui não sofrer com a minha solidão". Como pode me dizer tão bem? Olhar pela janela me faz chorar de tuas saudades. És meu espelho e nada me rouba de tua presença.

Tuas páginas de Bernardo são meus diários. Como posso encontrar tão longe minha alma?

"Como nunca descobri em mim qualidades que atraísse alguém, nunca pude acreditar que alguém se sentisse atraído por mim.." Porque contigo? Nos tempos recentes me disseram da socialização. Como se fôssemos socializáveis. Não há social para os "aleijados de espírito".

Tenho a "coragem intelectual" de reconhecer que não passo de "um farrapo humano, aborto sobrevivente, louco ainda fora das fronteiras da internabilidade", Como sabe dos abortos?

Amigo-alma, como podes compreender a nossa verdade? Falava eu do binômio piedade e náuseas, quando te vejo romper-me nisto: "Nem posso conceber que me estimem por compaixão, porque, embora fisicamente desajeitado e inaceitável, não tenho aquele grau de amarfanhamento orgânico com que entre na órbita da compaixão alheia, nem mesmo aquela simpatia que a atrai quando ela não seja patentemente merecida; e para o que em mim merece piedade, não a pode haver, porque nunca há piedade para os aleijados do espírito. De modo que caí naquele centro de gravidade do desdém alheio, em que não me inclino para a simpatia de ninguém",

Como está teu chá? Há veneno ainda? Eu não tive perdão. E a toxina foi inoculada pelo ódio que me feriu. Meu corpo também é aleijado, e a falta da cera foi lembrada. Não conheço a piedade.

E como poderia ser? "Sofri a humilhação de me conhecer".

E sobre o capricho, que nos disseram ser excesso de amor, próprio dos outros, tua voz é cortante. "Compreendi que era impossível a alguém amar-me, a não ser que lhe faltasse de todo o senso estético - e então eu o desprezaria por isso; e que mesmo simpatizar comigo não podia passar de um capricho da indiferença alheia." Quem distante nutriu esse pouco apurado senso estético, talvez caminhe apenas para a compaixão. Não amor, este não nos pertence.

Amigo, durma comigo. Acorda-me em teus mares. Saio de mansinho, nunca ouviram e não seremos estardalhaços. Fique aqui, faz-me ser para sempre como és.

Descansaremos e finalmente nossos quartos dirão quem somos.