quinta-feira, abril 27, 2023

 A-fetar (melhor lido ouvindo Antes das seis de Renato Russo)

Pela impossibilidade de falar mais, pensei em escrever. Pensei muito. Não sei se escreverei tanto.

Pela impossibilidade de conversar, escrevo pra falar comigo primeiro. Sinto falta de ouvir e de ser ouvido. Mas também sinto falta das letras desenhando-se na tela na velocidade das emoções intensas. Talvez minha única certeza inabalável (até aqui) é a de que a escrita me espelha melhor. Minha alma é escrita.

Como para mega sensíveis não há coincidências, ao relembrar a trilha sonora dos idos anos 90 e uma adolescência toda cheia de sonhos fui ao mercado abastecer-me com originais geladas. A tristeza é mais feliz alcoolizada. E a vida é triste demais. No mercadinho mais bem estilizado musicalmente tocava a canção da novela do primeiro “crush”: era o sinal! Eu deveria escrever.

Quando pensei sobre os afetos, sobre ser afetado... Talvez eu tenha sido mais. Numa incógnita contradição, não ser afeto é a melhor forma de afetar. Ou a pior. Só sei que esperei todos os dias por algo que não conheci, e sinceramente, há uma dura certeza advinda da exatidão científica de que não conhecerei. Preciso fazer um esforço enorme para lembrar qual a sensação (vagamente sei ser boa) de um afago no rosto. Um pária curitibano facilmente torna-se intocável. Enquanto sou tocado pelas vidas que reconheço todos os dias no ofício que escolhi, sou invisível. Sei que também me escondo, contudo, não encontro poros de abertura pra existir além de um mísero e prosaico professor.

O fato é que encontro um vazio que se abre constantemente em mim. Não tenho objetivos. Pela classe, preciso de emprego e salário. Mas e a finalidade deste quase meio século? Não sou afeito a crenças em finais felizes. Não conheci nem começos, por que os finais deveriam conhecer felicidades? Iniciei por teimosia, que se fosse por inteligência, teria desistido. A vida é ausência demais. Ainda assim, busquei afetos em todos os lugares, até os mais improváveis e inóspitos. Para alguma coisa deve servir ter nascido em maio.

Nunca fui o desejo, o afeto, a saudade, o apego, o amor de ninguém. Talvez dos gatos, mas por falta de opção. Eu nunca fui opção. Por isso, acho piegas e irritativo o mantra contemporâneo identitarista “resistir não é opção”. Nesta luta liberal individualista do século XXI, do lugar de “cala” (a boca), tudo se romantiza e no glamour açucarado dos egos e das contas bancárias infladas as frases-bombas explodem num sentido evasivo e (mal) afetado.

Para ser desejado, como ser, como corpo ou como insubstituível (ainda que instantânea) companhia, antes é necessário ter valor. E valor vem do orgulho. Do seu contrário vem o fracasso, trilha conhecida da identidade deteriorada. Como se afeta um corpo sem valor? Como se produz presença num ser da ausência? Como se inscreve a falta em quem é pleno de escassez? Onde se desliga o motor da carência? Onde está o tal privilégio colorido que eu deveria ter? A única cor que eu conheci foi o cinza nublado.

Indago, pois, há uma fúria que me invade. De onde vem as vitórias tão alardeadas? Onde guardam seus aplausos? Os abraços são reais? E esta tal “potência de vidas” se encontra em qual esconderijo?

Sou íntimo da violência. Minha imponente tutora, presente em meus dias e noites de dentes à mostra buscando o mínimo de defesa. Sou irmão do exílio. No insulamento de uma vida que já se alonga demais, sou defeito e causa de um coletivo que não me inclui. Sozinho, ilhado nos meus pensamentos e sentimentos sou quem ama estudar o social. O mais distante é o impossível para mim. A vida tal como Coringa, ri em desespero das minhas escolhas. Por que minha paixão por tudo que me foi privado? Que espécie de perversão meu espírito aceitou para amar tudo que me faz falta?

O princípio da negação “a” talvez explique o quanto me afeta a exiguidade dos afetos. Eu, como feto teimoso que por idiota insistência tornou-se nascido, sou o A-feto.

Renato sempre esteve certo.