quinta-feira, abril 09, 2015

Teu diário

Meu amigo, vamos tomar nosso chá? Sei que não há mais espaços incólumes dos olhares maldosos, entretanto aqui, somos invisíveis. Os olhos que não nos olham estão voltados para outros lugares.

Hoje queria tanto que estivesse aqui comigo. Também não tenho amigos, e se fosse enterrado, seria sem alarde. Apenas um alívio.

Antes de morrer queria visitar teus passos. Conhecer teu quarto e ver da janela o que vias. Caminhar até teus bares e lá te ouvir. Como é tua voz? Sabia que da minha janela  vejo o Mercado Municipal? Fui visitá-lo para te sentir mais perto. Imagino que teria sido prazeroso.

Guardo a escrita para a noite, como aprendi contigo. Tenho calado. "Ainda não consegui não sofrer com a minha solidão". Como pode me dizer tão bem? Olhar pela janela me faz chorar de tuas saudades. És meu espelho e nada me rouba de tua presença.

Tuas páginas de Bernardo são meus diários. Como posso encontrar tão longe minha alma?

"Como nunca descobri em mim qualidades que atraísse alguém, nunca pude acreditar que alguém se sentisse atraído por mim.." Porque contigo? Nos tempos recentes me disseram da socialização. Como se fôssemos socializáveis. Não há social para os "aleijados de espírito".

Tenho a "coragem intelectual" de reconhecer que não passo de "um farrapo humano, aborto sobrevivente, louco ainda fora das fronteiras da internabilidade", Como sabe dos abortos?

Amigo-alma, como podes compreender a nossa verdade? Falava eu do binômio piedade e náuseas, quando te vejo romper-me nisto: "Nem posso conceber que me estimem por compaixão, porque, embora fisicamente desajeitado e inaceitável, não tenho aquele grau de amarfanhamento orgânico com que entre na órbita da compaixão alheia, nem mesmo aquela simpatia que a atrai quando ela não seja patentemente merecida; e para o que em mim merece piedade, não a pode haver, porque nunca há piedade para os aleijados do espírito. De modo que caí naquele centro de gravidade do desdém alheio, em que não me inclino para a simpatia de ninguém",

Como está teu chá? Há veneno ainda? Eu não tive perdão. E a toxina foi inoculada pelo ódio que me feriu. Meu corpo também é aleijado, e a falta da cera foi lembrada. Não conheço a piedade.

E como poderia ser? "Sofri a humilhação de me conhecer".

E sobre o capricho, que nos disseram ser excesso de amor, próprio dos outros, tua voz é cortante. "Compreendi que era impossível a alguém amar-me, a não ser que lhe faltasse de todo o senso estético - e então eu o desprezaria por isso; e que mesmo simpatizar comigo não podia passar de um capricho da indiferença alheia." Quem distante nutriu esse pouco apurado senso estético, talvez caminhe apenas para a compaixão. Não amor, este não nos pertence.

Amigo, durma comigo. Acorda-me em teus mares. Saio de mansinho, nunca ouviram e não seremos estardalhaços. Fique aqui, faz-me ser para sempre como és.

Descansaremos e finalmente nossos quartos dirão quem somos.





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